terça-feira, 19 de agosto de 2014

A gênese do pensamento racialista e racista

A soma de vários fatores favoreceu, por um lado, o entendimento da escravidão como uma instituição indigna, retrógrada, aviltante, que levou à rejeição desta forma de trabalho até sua total extinção na Europa e na América. Mas, por outro lado, os mesmos conceitos que ofereceram a base de apoio para a condenação da escravidão abriram caminho para o surgimento de teorias que hierarquizavam os homens de acordo com sua “raça” e cultura (SANTOS, 2005, p. 15).
O trecho acima parece contraditório ou um pouco confuso, mas é uma formulação bem característica quando falamos de Iluminismo. Este modo de pensar possuía em seu âmago contradições que foram se manifestando em debates ao longo do tempo e que, para nós do presente, parecem absurdas quando olhamos com as lentes dos anos dois mil.
No século XVIII, o Iluminismo formulou uma nova maneira de pensar a natureza para além do estudo das espécies, ele buscava a investigação dos indivíduos[1]. Mas, para isso, era necessário um novo paradigma para o conhecimento que abarcasse tal complexidade de estudo, requisito este que somente a biologia comportaria. O objetivo principal não era desvendar os mistérios do mundo, mas descrevê-los[2], por isso, discussões como o conceito de humano, a origem dos indivíduos e as diferenças entre eles foram constantes no pensamento da época.
Para chegar-se ao conhecimento era necessário mais um item que, para a época, fazia-se indispensável: o entendimento das regras universais que estariam presentes nos múltiplos fenômenos naturais[3]. No entanto, havia aqueles que contestavam esta formulação. Um deles foi David Hume que alegava que “a regularidade da natureza nada mais é do que o reflexo da necessidade psicológica do homem, que precisa nela crer para edificar todo e qualquer conhecimento”[4]. Sendo isso verdade ou não, não nos cabe, no momento, discutir, atentemo-nos ao tema.
Como já dito, aconteceram várias discussões acerca do ser humano, uma delas foi sobre o seu conceito. O que é ser humano? Na Encyclopédie, Diderot assina o verbete “homem” no qual ele considera “que o homem é um ser que sente, reflete, pensa, que passeia livremente pelo planeta”, que vive em sociedade, inventou “as artes, as ciências e as leis e [que,] além disso[,] teria uma bondade que lhe seria própria”[5].
Mas há um problema neste conceito de homem, porque ele não abrange os negros escravizados, já que eles não podem passear “livremente pelo planeta”. O conceito de Diderot cria um conceito de homem ideal, logo os que não são desta maneira são inferiores, gerando assim a, ridícula, hierarquização em “raças”.
Tanto Diderot quanto Voltaire e Buffon (grande influenciador dos anteriores) defendiam a ideia de uma unidade humana, uma espécie, porém discordavam sobre a origem das diferenças apresentadas entre os indivíduos que a compõem[6].
No mesmo livro já citado (Encyclopédie), Diderot no verbete “espécie humana” escreve que o homem “apresenta três tipos de variações, uma é a cor; a segunda é a da grandeza e da forma; a terceira é a das diferenças naturais entre o povos”[7], Buffon não vai tão longe e também enumera três grandes grupos de diferenças que se verificam na espécie humana: a cor (cabelos, olhos, e pele), a forma e o tamanho (dimensões e proporções do corpo, estrutura do rosto) e os costumes e as inclinações[8]. Já para Voltaire[9], a espécie humana teve origens diferentes, cada uma resultando num “tipo” de homem[10], sendo que a unidade para poder formar a espécie estaria nos sentimentos de “bondade e justiça necessários à sobrevivência, mas dispostos em estados de desenvolvimento racional diferentes”[11]. Mas por que os costumes devem ser enumerados como uma das principais diferenças? Ora, meu caro leitor, os costumes traduzem “as capacidades de interferência do homem no meio”[12], desse jeito pode-se elencar a questão da racionalidade e da dominação da natureza, criando-se o abominável pensamento de que quem domina a natureza de uma forma mais abrangente seria superior aos demais.
Voltaire, em seu Tratado de Metafísica, apresentou a seguinte descrição do negro:
um animal preto, que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte do que outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo exatamente como eles (Retirado de SANTOS, 2005, p. 27).
Eis aqui, uma das obras que fundaram o pensamento racialista na Europa. Outra formulação, novamente na Encyclopédie, no verbete “negros” traz uma nova interpretação que para a época foi algo extremamente iluminador:
O fenômeno o mais marcado e a lei a mais constante sobre a cor dos habitantes da Terra é que, toda esta larga banda que cerca o globo do oriente ao ocidente que se chama zona tórrida, não é habitada senão por povos negros (Extraído de SANTOS, 2005, p. 33).
Foi desenvolvida a relação entre as diferenças físicas humanas e as diferenças geográficas da natureza. Com o estabelecimento desta relação foi possível fundar a ideia racialista e difundi-la para o mundo todo, porque, agora, os pensadores argumentavam que a natureza influencia as estruturas físicas humanas, portanto, o uso da razão, por isso, aqueles que melhor utilizassem sua razão para dominar ou controlar a natureza que os influenciam seriam os mais desenvolvidos. Os iluministas conseguiram formular uma teoria que justificou e ainda, infelizmente, justifica verdadeiras chacinas.
As ideias ruins não param por aí. Formulou-se também a teoria de que uma sociedade mais perfeita seria aquela que, além de melhor dominar a natureza, teria a melhor “raça”. Mas por que as pessoas aceitavam isso? Acreditava-se que haveria uma ordem natural onde os brancos seriam naturalmente superiores aos outros.
Há uma ordem que não é imposta por nenhum ser transcendente e não corresponde a nenhum finalismo, mas é encontrada na própria forma como os arranjos naturais ocorrem e ocorreram. Mais do que uma ordem natural e universal, seria uma necessidade natural e universal responsável pela estabilidade do mundo. Não é preciso buscar a compreensão do porquê das coisas estarem onde estão, ou do que ou por que são como são ou quem as dispôs desta forma. Basta saber que elas obedecem a este princípio e de que são, portanto, inteligíveis. / Esta ordem aplica-se a todos os seres da natureza. / Na base da ideia de ordem está a noção de progresso. / Se a ordem define uma certa estabilidade na natureza, o progresso imprime-lhe movimento. Crer no progresso equivale a crer na perfeita liberdade de movimento do homem, negada pela natureza, que o delimita biologicamente (SANTOS, 2005, p. 39).
Eis o nascimento do maldito pensamento racialista e racista que, infelizmente, como já cansamos de ver, está no presente. Devemos combatê-lo e entendendo sua gênese já é um grande passo dado. Para saber mais sobre a história deste pensamento, leia:

SANTOS, Gislene Aparecida dos, A invenção do “ser negro”: Um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo, Educ/Fapesp; Rio de Janeiro, Pallas, 2005. 176 p.






[1] SANTOS, 2005, p. 24.
[2] Ibid., p. 25.
[3] Ibidem.
[4] Ibid., p. 24.
[5] Ibid., p. 25.
[6] SANTOS, 2005, p. 29.
[7] Extraído de SANTOS, 2005, p. 29.
[8] SANTOS, 2005, p. 30.
[9] Em seu Tratado de Metafísica.
[10] SANTOS, 2005, p. 30.
[11] Vide nota de rodapé da página 30 em SANTOS, 2005.
[12] Ibid., p. 31.

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