A soma de vários fatores favoreceu,
por um lado, o entendimento da escravidão como uma instituição indigna,
retrógrada, aviltante, que levou à rejeição desta forma de trabalho até sua
total extinção na Europa e na América. Mas, por outro lado, os mesmos conceitos
que ofereceram a base de apoio para a condenação da escravidão abriram caminho
para o surgimento de teorias que hierarquizavam os homens de acordo com sua
“raça” e cultura (SANTOS, 2005, p. 15).
O trecho acima parece contraditório ou um pouco confuso, mas
é uma formulação bem característica quando falamos de Iluminismo. Este modo de
pensar possuía em seu âmago contradições que foram se manifestando em debates
ao longo do tempo e que, para nós do presente, parecem absurdas quando olhamos
com as lentes dos anos dois mil.
No século XVIII, o Iluminismo formulou uma nova maneira de
pensar a natureza para além do estudo das espécies, ele buscava a investigação
dos indivíduos[1].
Mas, para isso, era necessário um novo paradigma para o conhecimento que abarcasse
tal complexidade de estudo, requisito este que somente a biologia comportaria.
O objetivo principal não era desvendar os mistérios do mundo, mas descrevê-los[2], por isso, discussões como
o conceito de humano, a origem dos indivíduos e as diferenças entre eles foram
constantes no pensamento da época.
Para chegar-se ao conhecimento era necessário mais um item
que, para a época, fazia-se indispensável: o entendimento das regras universais
que estariam presentes nos múltiplos fenômenos naturais[3]. No entanto, havia aqueles
que contestavam esta formulação. Um deles foi David Hume que alegava que “a
regularidade da natureza nada mais é do que o reflexo da necessidade
psicológica do homem, que precisa nela crer para edificar todo e qualquer
conhecimento”[4].
Sendo isso verdade ou não, não nos cabe, no momento, discutir, atentemo-nos ao
tema.
Como já dito, aconteceram várias discussões acerca do ser
humano, uma delas foi sobre o seu conceito. O que é ser humano? Na Encyclopédie, Diderot assina o verbete
“homem” no qual ele considera “que o homem é um ser que sente, reflete, pensa,
que passeia livremente pelo planeta”, que vive em sociedade, inventou “as
artes, as ciências e as leis e [que,] além disso[,] teria uma bondade que lhe
seria própria”[5].
Mas há um problema neste conceito de homem, porque ele não
abrange os negros escravizados, já que eles não podem passear “livremente pelo
planeta”. O conceito de Diderot cria um conceito de homem ideal, logo os que
não são desta maneira são inferiores, gerando assim a, ridícula, hierarquização
em “raças”.
Tanto Diderot quanto Voltaire e Buffon (grande influenciador
dos anteriores) defendiam a ideia de uma unidade humana, uma espécie, porém
discordavam sobre a origem das diferenças apresentadas entre os indivíduos que
a compõem[6].
No mesmo livro já citado (Encyclopédie), Diderot no verbete “espécie humana” escreve que o
homem “apresenta três tipos de variações, uma é a cor; a segunda é a da
grandeza e da forma; a terceira é a das diferenças naturais entre o povos”[7], Buffon não vai tão longe
e também enumera três grandes grupos de diferenças que se verificam na espécie
humana: a cor (cabelos, olhos, e pele), a forma e o tamanho (dimensões e
proporções do corpo, estrutura do rosto) e os costumes e as inclinações[8]. Já para Voltaire[9], a espécie humana teve
origens diferentes, cada uma resultando num “tipo” de homem[10], sendo que a unidade para
poder formar a espécie estaria nos sentimentos de “bondade e justiça
necessários à sobrevivência, mas dispostos em estados de desenvolvimento
racional diferentes”[11]. Mas por que os costumes
devem ser enumerados como uma das principais diferenças? Ora, meu caro leitor,
os costumes traduzem “as capacidades de interferência do homem no meio”[12], desse jeito pode-se
elencar a questão da racionalidade e da dominação da natureza, criando-se o
abominável pensamento de que quem domina a natureza de uma forma mais
abrangente seria superior aos demais.
Voltaire, em seu Tratado
de Metafísica, apresentou a seguinte descrição do negro:
um animal preto, que possui lã sobre
a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos
forte do que outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias
do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido
igualmente às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo
exatamente como eles (Retirado de SANTOS, 2005, p. 27).
Eis aqui, uma das obras que fundaram o pensamento racialista
na Europa. Outra formulação, novamente na Encyclopédie,
no verbete “negros” traz uma nova interpretação que para a época foi algo extremamente
iluminador:
O fenômeno o mais marcado e a lei a
mais constante sobre a cor dos habitantes da Terra é que, toda esta larga banda
que cerca o globo do oriente ao ocidente que se chama zona tórrida, não é
habitada senão por povos negros (Extraído de SANTOS, 2005, p. 33).
Foi desenvolvida a
relação entre as diferenças físicas humanas e as diferenças geográficas da
natureza. Com o estabelecimento desta relação foi possível fundar a ideia
racialista e difundi-la para o mundo todo, porque, agora, os pensadores argumentavam
que a natureza influencia as estruturas físicas humanas, portanto, o uso da
razão, por isso, aqueles que melhor utilizassem sua razão para dominar ou
controlar a natureza que os influenciam seriam os mais desenvolvidos. Os iluministas conseguiram formular uma
teoria que justificou e ainda, infelizmente, justifica verdadeiras chacinas.
As ideias ruins não param por aí. Formulou-se também a
teoria de que uma sociedade mais perfeita seria aquela que, além de melhor
dominar a natureza, teria a melhor “raça”. Mas por que as pessoas aceitavam
isso? Acreditava-se que haveria uma ordem natural onde os brancos seriam naturalmente superiores aos outros.
Há uma ordem que não é imposta por
nenhum ser transcendente e não corresponde a nenhum finalismo, mas é encontrada
na própria forma como os arranjos naturais ocorrem e ocorreram. Mais do que uma
ordem natural e universal, seria uma necessidade natural e universal responsável
pela estabilidade do mundo. Não é preciso buscar a compreensão do porquê das
coisas estarem onde estão, ou do que ou por que são como são ou quem as dispôs
desta forma. Basta saber que elas obedecem a este princípio e de que são,
portanto, inteligíveis. / Esta ordem aplica-se a todos os seres da natureza. /
Na base da ideia de ordem está a noção de progresso. / Se a ordem define uma
certa estabilidade na natureza, o progresso imprime-lhe movimento. Crer no
progresso equivale a crer na perfeita liberdade de movimento do homem, negada
pela natureza, que o delimita biologicamente (SANTOS, 2005, p. 39).
Eis o nascimento do maldito pensamento racialista e racista
que, infelizmente, como já cansamos de ver, está no presente. Devemos combatê-lo
e entendendo sua gênese já é um grande passo dado. Para saber mais sobre a história
deste pensamento, leia:
SANTOS, Gislene Aparecida dos, A
invenção do “ser negro”: Um percurso das ideias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo, Educ/Fapesp; Rio de Janeiro, Pallas,
2005. 176 p.
[1]
SANTOS, 2005, p. 24.
[2]
Ibid., p. 25.
[3]
Ibidem.
[4]
Ibid., p. 24.
[5]
Ibid., p. 25.
[6]
SANTOS, 2005, p. 29.
[7]
Extraído de SANTOS, 2005, p. 29.
[8]
SANTOS, 2005, p. 30.
[9]
Em seu Tratado de Metafísica.
[10]
SANTOS, 2005, p. 30.
[11]
Vide nota de rodapé da página 30 em SANTOS, 2005.
[12]
Ibid., p. 31.
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