quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O mulato em Debret

Todos alguma vez ouvirão falar de Debret, se não ouvirem, pelo menos de suas obras falarão mesmo sem saber a autoria. Jean-Baptiste Debret integrou a Missão Artística Francesa no Brasil no século XIX. Ele passou quinze anos aqui e retratou, para as elites da época, a população e os costumes daquilo que seria o Brasil. Havia uma preocupação muito grande em como um país recém-independente como o nosso pudesse formar uma nação com uma grande população negra sem falar na indígena. A escravidão é um marco que nos influencia até hoje em muitas posturas que diversos grupos tomam. A seguir, reproduzimos um trecho do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil de Debret (publicado pela primeira vez no ano de 1834) onde ele escreve e representa graficamente aquilo que ele julga necessário da, até então, população brasileira. O texto fala sobre o mulato e seu caráter na visão do autor, bem como uma possível proposta de integração da população mestiça e a formação de uma nação brasileira.

Autorretrato de J.-B. Debret publicado em sua obra 
Voyage pittoresque et historique au Brésil.




"Caráter do mulato

Mulato dito homem de cor, mestiço de negra com branco.

      É o mulato, no Rio de Janeiro, o homem cuja constituição pode ser considerada mais robusta: esse indígena, semi-africano, dono de um temperamento em harmonia com o clima, resiste ao grande calor.
      Ele tem mais energia do que o negro, e a parcela de inteligência que lhe vem da raça branca para orientar mais racionalmente as vantagens físicas e morais que o colocam acima do negro.
      É naturalmente presunçoso e libidinoso, e também irascível e rancoroso, oprimido, por causa da cor, pela raça branca, que o despreza, e pela negra, que detesta a superioridade de que ele se prevalece.
      O negro, com efeito, afirma que o mulato é um monstro, uma raça maldita, porque, na sua cabeça, Deus a princípio criou apenas o homem branco e o homem negro. Este raciocínio, completamente material, repercute entretanto na sociedade política do Brasil, onde o mulato mais ou menos civilizado tende sempre a libertar-se da posição indecisa que o branco lhe assinala na ordem social.
     A cisão provocada pelo orgulho americano do mulato, de um lado, e a altivez portuguesa do brasileiro branco, de outro, é motivo de uma guerra de morte que se manifestará durante muito tempo ainda, nas perturbações políticas, entre essas duas raças rivais por vaidade.
      Uma terceira razão de desentendimento contribui ainda para desunir os homens brancos no Brasil: é a presunção nacional de português da Europa, envaidecido de seu país, que não sabe compreender a diferença de cor da geração brasileira, que a trata ironicamente de mulata, sem distinção de origem. Foi o abuso dessa expressão pouco política que serviu de pretexto aos movimentos revolucionários que precederam a abdicação de Dom Pedro I.
      Somente a civilização poderá destruir esses elementos de desordem: materialmente, pela mistura mais frequente dos dois sangues, e moralmente, pelo progresso da educação, que retifica a opinião pública e a induz a respeitar o verdadeiro mérito onde quer que se encontre.
      A classe dos mulatos, muito acima da dos negros pelas suas possibilidades naturais, encontre, por si mesmo, maiores oportunidades para libertar-se da escravidão; ela é que fornece, com efeito, a maior parte dos operários qualificados; é ela também a mais turbulenta e, por conseguinte, a mais fácil de influenciar a fim de fomentar essas agitações populares de que um dia ela deixará de ser um simples instrumento, pois, examinando-se esses mestiços no seu estado de perfeita civilização, particularmente nas principais cidades do império, já se encontram inúmeros gozando da estima geral que conquistaram com seu êxito nas ciências e nas artes, na medicina ou na música, nas matemáticas ou na poesia, na cirurgia ou na pintura, êxitos cuja utilidade ou encanto deveriam constituir um título a mais e prol do esquecimento futuro dessa linha de demarcação, que o amor-próprio traçou, mas que a razão deverá apagar um dia."

(DEBRET, Jean-Basptiste, "Caráter do mulato", in: _____, Viagem pitoresca e 
histórica ao Brasil. São Paulo, Círculo do Livro, [1834] s/d., p. 141-2)


Como todo documento histórico, este trecho está carregado de intensões e pode, assim como os desenhos de Debret, nos mostrar as opiniões que o pintor tinha sobre o Brasil da primeira metade do século XIX, mais precisamente do Rio de Janeiro dessa época.
Debret tem uma visão interessante e completamente deturpada da realidade ao afirmar em seu texto que é o negro que exclui o mestiço da sociedade, enquanto o branco oferecia tanta liberdade que até o empregava em cargos na ordem social. Propomos a você que, após ler o trecho, volte a ele e procure a visão de Debret sobre como se daria a integração do negro e da população mestiça na sociedade brasileira, tente entender as justificativas e os exemplos dado pelo autor. Esse pensamento ainda tem uma influência hoje?


Um comentário:

  1. Estava lendo esse trecho de Debret, e fui ler a versão original em francês, de 1835. Me surpreendi ao encontrar a seguinte passagem: "La civilisation seule pourra détruire ces éléments désorganisateurs : elle le pourra, matériellement, par le mélange moins fréquent des deux sangs". Fiquei querendo saber se Debret escreveu de fato "moins fréquent", que podemos traduzir por "menos frequente", e o tradutor brasileiro corrigiu para "mais frequente"....Tenho a edição brasileira de 1978. A primeira edição em portugués é de 1939. Será que na de 39, já está compo "mais frequente"? São dúvidas que gostaria de esclarecer...

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