quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O trabalho nas ruas no Brasil escravista do século XIX: Uma visão de Jean-Baptiste Debret

Como, numa postagem anterior, falamos sobre Debret e seu pensamento sobre o mulato, mostraremos agora suas impressões sobre o cotidiano nas ruas do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Tenha em mente que as reproduções das imagens do pintor não são representações fidedignas da realidade urbana daquela época. As imagens são passíveis de leitura como os textos, mas este processo nos requer um arcabouço de ferramentas diferenciado.
As imagens e o trecho aqui apresentados são da famosa obra Voyage pittoresque et historique au Brésil (Viagem pitoresca e histórica ao Brasil) publicada, pela primeira vez, em 1834, neles aparecem representações de Jean-Baptiste Debret sobre a população negra e suas ocupações.

Os refrescos do Largo do Palácio

Negros de carro

Loja de barbeiros


"Barbeiros ambulantes

      Relegados, em verdade, para o último degrau da hierarquia dos barbeiros, esses Fígaros nômades sabem, entretanto, tornar sua profissão bastante lucrativa, pois, manejando com habilidade navalha e tesouras, consagram-se à faceirice dos negros de ambos os sexos, igualmente apaixonados pela elegância do corte de seus cabelos. Compenetrados e sagazes, vagueiam desde manhã pelas praias, nos pontos de desembarque, pelo cais, nas ruas e praças públicas, ou em torno das grandes oficinas, certos de encontrar clientes entre os negros de ganho (carregadores, moços de recados, os pedreiros, os carpinteiros, os marinheiros e as quitandeiras).
      Um pedaço de sabão, uma bacia de cobre de barbeiro, quebrada ou amassada, duas navalhas, uma tesoura, embrulhados num lenço velho à guisa de maleta, eis os instrumentos com que lidam os jovens barbeiros, apenas cobertos de trapos quando pertencem a um senhor pobre, e sempre dispostos, onde quer que se encontrem, a aperfeiçoar seu talento à custa dos fregueses confiantes, que consentem em entregar-lhes a cabeleira ou o queixo.
    Alguns, entretanto, mais hábeis, dotados mesmo do gênio do desenho, distinguem-se pela variedade que sabem dar ao corte de cabelo dos negros de ganho, sobre a cabeça dos quais desenham divisões pitorescas, formadas por chumaços de cabelos cortados com a tesoura e separados uns dos outros por pedaços raspados a navalha e cujo colorido mais claro lhes traça o contorno de uma maneira nítida e harmoniosa.
      Aparentemente vagabundos, são no entanto obrigados a se apresentar duas vezes por dia na casa de seus senhores, para as refeições e para entregar o resultado da féria.
      Outros sabem aliar a vivacidade à destreza e conseguem maiores resultados postando-se em certos dias e certas horas na estrada de Mata-Porcos a São Cristóvão, pois aí encontram as tropas que chegam de São Paulo e Minas e cujos tropeiros, após uma longa viagem, se mostram sempre dispostos a cortar a barba para entrar mais decentemente no Rio.
      A cena aqui desenhada [a seguir] passa-se nas proximidades do Largo do Palácio, perto do mercado de peixe. Dois negros de elite estão sentados no chão; a medalha do que está ensaboado indica sua função na alfândega. Ambos aguardam, numa imobilidade favorável a seus barbeiros, o momento de remunerar-lhes a habilidade com a módica importância de dois vinténs."

(DEBRET, Jean-Basptiste, "Barbeiros ambulantes", in: _____, Viagem pitoresca e 
histórica ao Brasil. São Paulo, Círculo do Livro, [1834] s/d., p. 185)





Barbeiros ambulantes

Debret capta o cotidiano à sua maneira, por isso, propomos a você que relacione as figuras principais das obras com a paisagem, isto é, o que está acontecendo atrás da cena. É comum ver escravos trabalhando nas ruas para Debret, a partir disso, o que fariam os brancos? Onde estariam?

O mulato em Debret

Todos alguma vez ouvirão falar de Debret, se não ouvirem, pelo menos de suas obras falarão mesmo sem saber a autoria. Jean-Baptiste Debret integrou a Missão Artística Francesa no Brasil no século XIX. Ele passou quinze anos aqui e retratou, para as elites da época, a população e os costumes daquilo que seria o Brasil. Havia uma preocupação muito grande em como um país recém-independente como o nosso pudesse formar uma nação com uma grande população negra sem falar na indígena. A escravidão é um marco que nos influencia até hoje em muitas posturas que diversos grupos tomam. A seguir, reproduzimos um trecho do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil de Debret (publicado pela primeira vez no ano de 1834) onde ele escreve e representa graficamente aquilo que ele julga necessário da, até então, população brasileira. O texto fala sobre o mulato e seu caráter na visão do autor, bem como uma possível proposta de integração da população mestiça e a formação de uma nação brasileira.

Autorretrato de J.-B. Debret publicado em sua obra 
Voyage pittoresque et historique au Brésil.




"Caráter do mulato

Mulato dito homem de cor, mestiço de negra com branco.

      É o mulato, no Rio de Janeiro, o homem cuja constituição pode ser considerada mais robusta: esse indígena, semi-africano, dono de um temperamento em harmonia com o clima, resiste ao grande calor.
      Ele tem mais energia do que o negro, e a parcela de inteligência que lhe vem da raça branca para orientar mais racionalmente as vantagens físicas e morais que o colocam acima do negro.
      É naturalmente presunçoso e libidinoso, e também irascível e rancoroso, oprimido, por causa da cor, pela raça branca, que o despreza, e pela negra, que detesta a superioridade de que ele se prevalece.
      O negro, com efeito, afirma que o mulato é um monstro, uma raça maldita, porque, na sua cabeça, Deus a princípio criou apenas o homem branco e o homem negro. Este raciocínio, completamente material, repercute entretanto na sociedade política do Brasil, onde o mulato mais ou menos civilizado tende sempre a libertar-se da posição indecisa que o branco lhe assinala na ordem social.
     A cisão provocada pelo orgulho americano do mulato, de um lado, e a altivez portuguesa do brasileiro branco, de outro, é motivo de uma guerra de morte que se manifestará durante muito tempo ainda, nas perturbações políticas, entre essas duas raças rivais por vaidade.
      Uma terceira razão de desentendimento contribui ainda para desunir os homens brancos no Brasil: é a presunção nacional de português da Europa, envaidecido de seu país, que não sabe compreender a diferença de cor da geração brasileira, que a trata ironicamente de mulata, sem distinção de origem. Foi o abuso dessa expressão pouco política que serviu de pretexto aos movimentos revolucionários que precederam a abdicação de Dom Pedro I.
      Somente a civilização poderá destruir esses elementos de desordem: materialmente, pela mistura mais frequente dos dois sangues, e moralmente, pelo progresso da educação, que retifica a opinião pública e a induz a respeitar o verdadeiro mérito onde quer que se encontre.
      A classe dos mulatos, muito acima da dos negros pelas suas possibilidades naturais, encontre, por si mesmo, maiores oportunidades para libertar-se da escravidão; ela é que fornece, com efeito, a maior parte dos operários qualificados; é ela também a mais turbulenta e, por conseguinte, a mais fácil de influenciar a fim de fomentar essas agitações populares de que um dia ela deixará de ser um simples instrumento, pois, examinando-se esses mestiços no seu estado de perfeita civilização, particularmente nas principais cidades do império, já se encontram inúmeros gozando da estima geral que conquistaram com seu êxito nas ciências e nas artes, na medicina ou na música, nas matemáticas ou na poesia, na cirurgia ou na pintura, êxitos cuja utilidade ou encanto deveriam constituir um título a mais e prol do esquecimento futuro dessa linha de demarcação, que o amor-próprio traçou, mas que a razão deverá apagar um dia."

(DEBRET, Jean-Basptiste, "Caráter do mulato", in: _____, Viagem pitoresca e 
histórica ao Brasil. São Paulo, Círculo do Livro, [1834] s/d., p. 141-2)


Como todo documento histórico, este trecho está carregado de intensões e pode, assim como os desenhos de Debret, nos mostrar as opiniões que o pintor tinha sobre o Brasil da primeira metade do século XIX, mais precisamente do Rio de Janeiro dessa época.
Debret tem uma visão interessante e completamente deturpada da realidade ao afirmar em seu texto que é o negro que exclui o mestiço da sociedade, enquanto o branco oferecia tanta liberdade que até o empregava em cargos na ordem social. Propomos a você que, após ler o trecho, volte a ele e procure a visão de Debret sobre como se daria a integração do negro e da população mestiça na sociedade brasileira, tente entender as justificativas e os exemplos dado pelo autor. Esse pensamento ainda tem uma influência hoje?


terça-feira, 21 de outubro de 2014

“O perigo de uma única história” de Chimamanda Adichie

"Eu [Chimamanda Ngozi Adichie] sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar 'o perigo de uma história única'.
Eu cresci num campus universitário no leste da Nigéria. Minha mãe diz que eu comecei a ler com dois anos, mas eu acho que quatro é provavelmente mais próximo da verdade. Então, eu fui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britânicos e americanos. Eu fui também uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por volta dos sete anos, histórias com ilustrações em giz de cera, que minha pobre mãe era obrigada a ler, eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs. (Risos da plateia) E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. (Risos da plateia), apesar do fato que eu morava na Nigéria.
Eu nunca havia estado fora da Nigéria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas. E nós nunca falávamos sobre o tempo porque não era necessário. Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava que eu não tivesse a mínima ideia do que era cerveja de gengibre. (Risos da plateia) E por muitos anos depois, eu desejei desesperadamente experimentar cerveja de gengibre. Mas isso é outra história. A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis em face de uma história, principalmente quando somos crianças. [...]".



Chimamanda é autora de diversas obras com algumas traduções 
para o português como Meio sol amarelo  e Hibisco roxo


O que será que Chimamanda vai nos contar sobre "o perigo de uma história única"? Este pensamento da escritora nos mostra como são responsáveis pelo racismo e pelos estereótipos não só aqueles que produzem os discursos preconceituosos e mal fundamentados, mas também aqueles que os escutam e não buscam interrogá-los ou criar outros discursos.


Para assistir ao vídeo, basta clicar abaixo:



Para ter acesso à transcrição completa do mesmo, basta clicar no ícone abaixo:



Uma experiência de empatia: "Olhos azuis"

E se o racismo fosse sobre quem, sem perceber, o reproduz? Jane Elliott, uma professora, decide fazer uma experiência após ler sobre o nazismo e sua política de eugenia. A professora realiza, com sua turma, uma atividade que duraria apenas um dia, afirma ela. Jane cria uma situação de segregação em sua classe onde, alternadamente, pessoas com "olhos azuis" e pessoas com "olhos escuros" seriam alvo. Isto provoca nas crianças diversas reações, o que chama a atenção da docente. Esta experiência tem inúmeras implicâncias nas vidas da professora e de seus alunos.
O documentário Olhos azuis aborda um dos workshops que Jane Elliott realiza nos Estados Unidos. O impacto dele nos participantes é indescritível. Assista o filme e surpreenda-se como o preconceito é criado e como ele se perpetua até hoje.

Imagem retirada do filme

Imagem retirada do filme


Para assistir ao filme, basta clicar no ícone abaixo.